Marina Lacôrte, Gerente de Campanhas de Sistemas Alimentares na Proteção Animal Mundial, fala sobre o modelo agroalimentar que temos hoje que transformou a comida em produto do mercado financeiro.
Há quase setenta anos, 16 de outubro é lembrado como Dia Mundial da Alimentação – data instituída pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Porém, desde 2022, com a volta do Brasil ao mapa da fome, não há motivos para celebrar, mas sim questionar.
Se vivemos em um país líder de exportações de carnes e grãos, por que em 15% dos lares as famílias não têm o que comer? Isso é um reflexo do modelo agroalimentar do qual somos reféns e em que a comida é transformada em produto do mercado financeiro e sua produção visa atender, primeiramente, o lucro das empresas, e não sanar a fome da população.
No passado recente da pandemia de COVID-19, enquanto o agronegócio brasileiro batia recordes de safras e de exportação, essa conta chegou para mais da metade da população brasileira, que passou a não ter acesso a uma alimentação adequada: mais de 33 milhões de pessoas começaram a sofrer de insegurança alimentar grave, nome técnico para uma terrível dor que só quem sente sabe exatamente o quanto ela é cruel: a fome.
A tendência é que esse quadro se agrave. Isso porque itens básicos de qualquer cesta básica, como a dupla feijão com arroz – que em uma nação de dimensões continentais e repleta de regionalismos funciona como um elo de união de identidade gastronômica, frequentando das mesas mais humildes às mais elitizadas –, têm perdido espaço no cultivo.
Para se ter uma ideia, no período de noves anos, as áreas plantadas de arroz e feijão encolheram 53% e 37%, respectivamente. Em igual período, as lavouras de monocultura da soja expandiram em 162%.
Engana-se quem acha que essa soja vai alimentar as pessoas. Esses grãos são transformados em ração que alimentam animais criados em pequenos espaços sem parâmetros mínimos de bem-estar no sistema conhecido como pecuária industrial. Seres sencientes, que assim como os seres humanos sentem dor e emoções complexas, a exemplo de medo e empatia, esses animais – majoritariamente porcos e frangos – são tratados não como seres vivos, mas sim, commodities que vão alimentar o mercado externo, em vez de saciar, primeiramente, a fome dos brasileiros.
Esse ciclo, a cada dia que passa, se torna cada vez mais insustentável. Por isso, cientistas e organizações da sociedade civil defendem uma mudança nesse modelo agrícola que retira de parte considerável da população brasileira, principalmente os mais pobres, o direito, – previsto em Constituição Federal – a uma alimentação saudável e adequada.
Não à toa, entre os dias 13 e 17 de outubro, mais de dois mil jovens organizados nos movimentos populares que constroem a Via Campesina no Brasil, participaram do Acampamento Nacional “Juventude em Luta: por Terra e Soberania Popular”.
A Via Campesina Brasil representa trabalhadores do campo, da floresta e das águas. Reúne quilombolas, indígenas e movimentos sociais como Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil (MPP), Pastoral da Juventude Rural (PJR). A Via Campesina Brasil entende que o modelo de produção de alimentos é a solução para o combate à fome e garantia da soberania alimentar.
No encontro, a juventude realizou uma série de debates e listou reivindicações para dialogar com autoridades públicas que estiveram presentes nesses diálogos, como o Ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, e a Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e entregaram o documento “Plataforma da Juventude” que reúne demandas como a retomada do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), a contrariedade à aprovação do Marco Temporal, do PL do Veneno e a necessidade de ampliação do orçamento para políticas públicas ligadas à agricultura familiar.
Além dessas questões concretas, outros temas como o fortalecimento da produção de alimentos de verdade e saudáveis, o abastecimento, o direito à terra e território e a conquista de direitos sociais, como educação, cultura, acesso à crédito, também foram abordados.
O encontro foi encerrado com uma marcha diversa e potente, a qual a Proteção Animal Mundial teve oportunidade de acompanhar, em defesa da permanência da juventude em seus territórios, combatendo a fome e a crise ambiental,
A juventude sabe que é necessário iniciar uma transição do atual modelo para sistemas alimentares saudáveis, justos e sustentáveis, capazes de alimentar pessoas, em vez de empresas ou animais tratados como meras mercadorias.
Precisamos ampliar o modelo que respeita e valoriza a diversidade e a cultura alimentar de cada região. As vantagens são a preservação de territórios, que deixam de ser transformados em desertos de grãos, e a valorização da agricultura familiar e da agroecologia que têm como pilares os princípios da economia solidária e a conservação da natureza.
Os números mostram o sucesso dessa alternativa. Ocupando apenas 24% das terras nas quais o latifúndio não chegou e acessando apenas cerca de 15% dos recursos públicos destinados ao setor agrícola, a agricultura familiar produz 70% da mandioca, 42% do feijão preto, 49% da banana e 67% do abacaxi que abastecem o Brasil. Esses dados provam que incentivos a esse modelo podem, sim, encher os pratos e fazer com que a boa alimentação tenha motivos reais para ser celebrada por cada brasileiro.
É isso que poderá garantir um futuro menos dramático para as pessoas, os animais e o planeta.